segunda-feira, 26 de março de 2012

O TEMPO E OS TEMPOS NA FOTOGRAFIA por DANTE GASTALDONI - parte 1

Se a luz é a matéria-prima da fotografia, o tempo é a sua alma. E o tempo, nos limites deste artigo, se desdobra em muitos tempos, conforme irá perceber o leitor que se aventurar pelos parágrafos subsequentes. Em um dos possíveis percursos o foco estará no tempo cronológico, centrado em alguns momentos cruciais da história da fotografia e seus desdobramentos econômicos e estéticos. Outro caminho, o do tempo fragmentado, permitirá discorrer sobre a especificidade da linguagem fotográfica, quando comparada às demais expressões artísticas engendradas pelo espírito humano. Um último trajeto, o do tempo social, percorrerá a passos largos a relação entre ideologia e fotografia, de modo a constatar a substancial mudança que os últimos 170 anos imprimiram na face do mundo, configurando o que Roland Barthes classificou como a Civilização da Imagem.

No princípio eram as trevas
Há quem garanta que os aspectos ópticos da inversão da imagem já eram conhecidos pelos gregos desde Aristóteles, contudo é de origem árabe o esquema mais antigo de uma câmara escura que se tem notícia. 
O desenho, atribuído a Alhazen, data do século X e representa um cômodo totalmente vedado, com um orifício em uma das paredes, através do qual a luz projeta na parede oposta uma imagem invertida. A partir do século XCI, em formato bem menor e com o orifício substituído por uma lente, o instrumento ganhou notoriedade entre diversos pintores, principalmente a partir de Leonardo da Vinci.

No entanto, para aprisionar aquela imagem que cintilava dentro das caixas de madeira a humanidade ainda esperou um bom tempo. Era como se tivéssemos em mãos uma câmera fotográfica, mas nos faltasse o filme. Em outras palavras, as descobertas no campo da química não acompanhavam a velocidade das conquistas no terreno da física, uma hipótese que pode ser explicada por dois argumentos. Um deles aponta para as perseguições religiosas levadas a cabo pelos Tribunais da Inquisição, no período que ficou conhecido como Idade das Trevas. Os inquisidores inibiam quaisquer investidas no terreno da magia, uma palavra que, aliás, tem parentesco etimológico com a própria palavra imagem. Esta, por sua vez, é oriunda do latim "imagine", e refere-se, entre outros significados, à "representação plástica da divindade". Não é difícil supor que, em tais circunstâncias, qualquer alquimista capaz de gravar uma emanação de luz extraída da natureza seria um potencial candidato à fogueira. 
O outro argumento é de ordem econômica. Talvez a invenção da fotografia tenha permanecido adormecida enquanto aguardava pacientemente o advento da Revolução Industrial ocorrida no século XIX, que agilizaria a produção em série e tornaria o processo rentável. 

Surge a escrita da luz
Pelo sim, pelo não, foi apenas no dia 19 de agosto de 1839 que o pintor, cenógrafo e pesquisador autodidata Louis-Jacques-Mandé Daguerre apresenta formalmente seu invento na Academia de Ciências e Belas-Artes de Paris, e a data passa à história como o Dia Internacional da Fotografia, embora se trate de uma "certidão de nascimento" falsa, na medida em que a foto mais antiga que se conhece data de 1826. 
Essa história, entretanto, ajuda a esclarecer como o processo físico-químico que permitiu ao homem escrever com a luz é, ao mesmo tempo, uma eficaz jogada de marketing. A rigor, foi um outro francês, de nome Joseph Nicéphore Niépce, quem primeiro obteve uma imagem fotográfica após pesquisar obstinadamente, durante anos, um processo que ele mesmo batizou de heliografia. Com uma placa de cobre recoberta com betume da Judéia  capturou a imagem de alguns telhados vistos da janela de sua casa em Chalon-sur-Saône, região central da França. Uma fotografia ainda mais antiga, produzida em 1825 pelo próprio Niépce e descoberta apenas em 2006, desloca a origem da fotografia para um passado ainda mais distante, embora não tenha a mesma importância histórica da "Vista da janela", pois trata-se da reprodução fotográfica de uma tapeçaria holandesa, onde se vê a imagem de um menino e um cavalo. 
Em fevereiro de 1827, por conta dos auspiciosos resultados de sua pesquisa, Niépce, então com 64 anos, recebe uma carta de Daguerre, 22 anos mais jovem. Teve início, então, uma troca regular de correspondência, que, dois anos depois, evolui para uma sociedade entre ambos. Em 1833, o veterano pesquisador morre na miséria, sem ter vivido o suficiente para usufruir do sucesso de seu trabalho. Em 1839, utilizando o iodeto de prata como elemento fotossensível, Daguerre já obtinha uma qualidade razoável em suas imagens. É quando ressolve promover a tão propalada apresentação na Academia de Ciências e Belas-Artes de Paris e assumir a "paternidade" da fotografia. O curioso é que, a essa altura, a técnica já se encontrava disseminada em diversos cantos do mundo, a ponto de um francês radicado no Brasil de nome Hercule Florence, já produzir fotografias em nosso país antes mesmo da sua "descoberta oficial". Mérito para Daguerre, que, imbuído de um extraordinário senso de marketing, solicita o auxílio do astrônomo e deputado François Arago, o qual, em discurso memorável, apresenta as vantagens da descoberta aos membros da Academia e, em nome do inventor, doa à humanidade os direitos autorais sobre o processo egocentricamente denominado daguerreotipia. Além da fama e do reconhecimento público, Daguerre recebe em troca uma pensão vitalícia de 6 mil francos do governo francês.

A burguesia adota a fotografia
Em 1839, o tempo necessário para produzir uma imagem era de aproximadamente 15 minutos de exposição à luz do sol. Um ano depois, bastavam 13 minutos à sombra para sensibilizar uma chapa e, transcorrido mais um ano, o tempo de exposição estava reduzido a dois ou três minutos. As emulsões evoluíam os olhos vistos e, em 1842, já se conseguia fotografar com exposições de 20 segundos. No ano seguinte, o tempo de exposição não era mais objeção para o retrato. É bem verdade que as fotografias de estúdio ainda exigiam uma longa imobilidade dos fotografados que, não raro, se apoiavam em suportes ou bengalas.

Isso justifica, em certa medida, as poses austeras com que os nossos antepassados apareciam diante das câmeras.
Em seu livro Photographic et Societé (1974), hoje considerado um clássico no campo da história da fotografia, Gisèle Freund mostra como o advento da fotografia contribui para redefinir economicamente o terreno das artes plásticas. Analisando os cartórios de Marselha em 1850, uma década depois de Daguerre "doar" seu invento ao mundo, a fotógrafa e pesquisadora alemã detecta um processo de mudança nos hábitos de consumo da população local. À época, a cidade francesa tinha dois pintores miniaturistas que gozavam de relativa fama e viviam razoavelmente bem do seu ofício, produzindo cada umd eles cerca de 50 retratos por ano. Pouco tempo depois tinham sido inaugurados mais de 40 estúdios fotográficos na cidade, cada um deles produzindo cerca de 1200 chapas anuais, oferecendo retratos a um preço dez vezes menor e gerando um negócio de um milhão de francos anuais. Essa pesquisa espelha uma tendência que já tinha contagiado boa parte da Europa e estava prestes a atravessar o Atlântico. Ao longo de 1853, nada menos que dez mil retratistas americanos produziram cerca de três milhões de fotos, uma cifra impressionante para a época. Já o reconhecimento acadêmico vem antes mesmo do final da década, quando a Universidade de Londres inclui a fotografia em seu currículo. 

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